sexta-feira, 11 de março de 2016

O camponês e o burro


Era uma vez um camponês que tinha um burro. 
Um dia o animal caiu acidentalmente num poço e não conseguia sair de lá. O camponês tentou várias vezes libertar o burro, mas não era possível. 

Pediu ajuda a uns amigos, mas mesmo assim não conseguiram nada. Ao fim de vários dias desistiu. 
O poço estava seco, o burro estava velho e a única solução era enterrá-lo lá.

Pegou numa pá e começou a deitar terra no poço. O burro ficou desesperado ao aperceber-se do que estava a acontecer. 
Começou a zurrar cheio de amargura. Fazia dó ao camponês, mas ele não via outra solução. Até que num momento determinado deixou de ouvir o animal. 
Aproximou-se com temor da boca do poço para contemplar o cemitério. Com espanto viu algo insólito. 
Cada vez que o burro recebia a terra em cima, sacudia-a com decisão e pisava sobre ela. Com esta operação, na qual estava profundamente concentrado, já tinha subido mais de um metro dentro do poço. 
O camponês sorriu. Continuou a deitar terra e em pouco tempo o burro estava cá fora.


Todos nós temos dificuldades na vida. A diferença está no modo como reagimos diante delas. 

Existem pessoas que passam a existência a queixar-se, deixando-se soterrar pelas contrariedades. São pessimistas por natureza. 
Olham com ironia para aqueles que parecem felizes. Pensam que são ingênuos, doidos, que ainda não descobriram que esta vida não tem nenhum sentido. 

Não respeitam nada. Para eles não há nada que seja sagrado. Tudo se pode banalizar, ridicularizar, porque nada tem sentido. 
E se tem, não pensam dedicar nem cinco minutos a pensar nele. 

Talvez tivessem que mudar de vida, de atitude. Isso exige esforço e dá trabalho. Nada vale a pena, porque a alma é pequena.

Um cristão sabe que isso não é verdade. 
Sabe que foi criado por Deus por amor e que está chamado a viver com Ele para sempre na eternidade. 
Sabe que a sua vida tem um sentido e que as dificuldades que lhe surgem também. 

Tem uma profunda confiança em Deus e não duvida que, como diz São Paulo, “tudo é para bem”. 

Esta certeza fá-lo encarar as contrariedades como aquilo que são: uma oportunidade para crescer. 
Crescer no amor a Deus e crescer no amor ao próximo. 

Por isso, quando as dificuldades aparecem, sacode-as de cima com oração, esforço e otimismo. 

Também com a serenidade de quem sabe que a felicidade em plenitude não pode ser alcançada nesta vida. Está reservada para a futura.

E depois pisa essas dificuldades e assim robustece a sua fé e aproxima-se mais da vida que não terá fim. 

Diante das contradições não perde a paz, porque sabe que tudo procede do amor. Tudo está ordenado à salvação do homem, e Deus, que é Amor, não permite nada que não seja com essa finalidade.

Pe. Rodrigo Lynce de Faria

A voz da avó



Entrei no pequeno apartamento, gostava dele. Apanhava bastante luz do sol, tinha uma vista incrível da basílica, especialmente ao entardecer.

Aos poucos, fui tornando-o meu. Porta-retratos carregados de amores, sapatos espalhados, livros abertos no chão, temperinhos na cozinha. Depois de uma semana, já era a minha casa.

Noite fria, sentei-me em frente ao computador, santo Skype, tocou, tocou e ela atendeu. No primeiro “alô”, senti como se sua voz, tão doce quanto esganiçada, começasse a se espalhar pelo piso e subisse lentamente pelas paredes, como uma tinta coral aveludada, impregnando cada um daqueles poucos metros quadrados com sua presença, que mais se parecia com um abraço quente.

Não importava o quanto eu gastasse com a decoração. Foi a voz dela que finalmente transformou aquela casa num lar.

A voz da avó. Coisa poderosa. Não importa qual é o timbre, se é estridente, rouca ou tremida. Não importa se é mansa ou gritada. Não importa se é ou não capaz de entoar canções de ninar.

A voz da avó pode dizer tudo o que quiser sem que soe como exigência, afronta ou desaforo. A voz da avó tem carta branca e livre trânsito, não nos acua e mesmo quando pergunta o que não deve, não provoca qualquer sentimento de reprovação.

A voz da avó soa sempre como cuidado, como demonstração genuína de afeto, ainda que, às vezes, por vias tortas.

A mesma frase, na voz da mãe e na voz da avó soa completamente diferente.

“Você não comeu?”

Na voz da mãe é cobrança, na voz da avó é oferta. Na voz da mãe é preocupação, na voz da avó é cuidado. Na voz da mãe é ordem, na voz da avó é doce.

“Você está sem casaco?”

Na voz da mãe, vem bronca, na voz da avó, vem lã. Na voz da mãe é gripe, na voz da avó é chocolate quente. Na voz da mãe é “eu canso de falar pra você se agasalhar”, na voz da avó nunca tem cansaço, mesmo com as cordas vocais já tão gastas.

Longe de ser uma acusação às mães. Muito pelo contrário. Mães são o que tem que ser: educação, firmeza, base. Já avós, podem se dar o luxo de ser o que querem ser: delícia, leveza, afago.

Nem sempre elas dirão coisas boas. Às vezes vão dar seus gritos, seus resmungos, suas reclamadas. Porque são humanas. Aliás, são deliciosamente humanas.

Um dia, quando criança, fiz qualquer bobagem e minha avó me chamou de “sua merdinha”. 
Achei a maior graça. Acabei até gostando. Incrível como até merda, na voz da avó, vira amor. Incrível como só elas podem dizer certas coisas.

Feche os olhos, ouça sua voz.

Faça uma gravação imaginária. Guarde na sua melhor gaveta. Ouça de novo. Garanta que não esquece. Elas não duram para sempre. Mas a voz delas sim. A voz delas marca- e fica. 
Ouça enquanto pode e guarde naquela sua gaveta. 
Na melhor gaveta de todas, já que não podemos simplesmente atracá-las ao peito.

RUTH MANUS